No centro da imagem, o tambor. Não apenas como objeto, mas como rosto, identidade, escuta. Em “Oyá”, a artista visual Lírio Valente nos apresenta um autorretrato que não busca retratar seu semblante, mas sim sua pulsação interior — o som que vibra do ventre ao peito, atravessado pela ancestralidade. A figura parece emergir de uma névoa ritualística, dissolvendo-se entre o visível e o invisível, entre o corpo e o mito.
A obra, que integra a série coletiva Infinito Sintrópico da exposição Fragmentos do Tempo, traz no nome a orixá dos ventos, das tempestades e da mudança. Oyá, também conhecida como Iansã, é força que desestrutura, que gira, que movimenta o mundo. E é justamente nesse giro — entre passado, presente e o que ainda não tem nome — que se constrói a poética de Lírio.
A artista não pinta apenas o que vê. Ela compõe com aquilo que escuta: sons herdados, memórias sentidas no corpo, ritmos que vêm de longe e ainda assim insistem em permanecer. Seu rosto é tambor porque sua identidade reverbera — e reverberar é um verbo que toca o outro, que faz o som ultrapassar limites. Em um tempo de aceleração e sobrecarga, como nos lembra a artista, escutar-se é quase um ato de resistência.
Na técnica, há encontro de mundos: fotografia em dupla exposição, pintura digital e texturas sobrepostas. Um processo híbrido que não apenas traduz visualmente a fluidez da obra, mas também reforça seu sentido de transição. O corpo, em vez de se fixar, se dissolve. Fumaça, nuvem, som. É o invisível ganhando forma.

O tempo que gira, ecoa e retorna
No contexto da exposição Fragmentos do Tempo, realizada pelo Verve Coletivo de Arte no Clube do Comércio, em Porto Alegre, como parte da programação paralela à 14ª Bienal do Mercosul, Oyá atua como uma chave simbólica. A mostra reuniu artistas de diferentes regiões do Brasil em diálogo com a ideia de temporalidade fragmentada — propondo, por meio da arte, um mapeamento sensível do tempo contemporâneo e suas quebras: afetivas, sociais, materiais e existenciais.
"Carrega minha vivência pessoal, sim, mas também reverbera o arquétipo da mulher que carrega o tempo no ventre e no peito."
-Lírio Valente
Entre instalações, pinturas, colagens e fotografias, cada obra contribuiu com um fragmento de percepção sobre o colapso da linearidade. E é nesse contexto que Oyá se impõe como contraponto: ao tempo quebrado, oferece o tempo ancestral. À narrativa do colapso, responde com ritmo, compasso e rito. Um gesto visual de resistência, mas também de abertura. Como quem diz: há caminhos que não foram apagados, apenas deixaram de ser escutados.
Mas Oyá também carrega uma crítica silenciosa. Ao substituir o rosto por um tambor, Lírio Valente propõe um deslocamento do olhar para a escuta. Em um mundo saturado de imagens e discursos, o convite é outro: ouvir o que não se mostra. Reconhecer a força de narrativas silenciadas, de culturas apagadas, de vozes que continuam a ecoar mesmo quando o mundo insiste em ignorá-las.
A artista imagina que a obra, se adquirida, encontraria morada em espaços de cura ou escuta — locais onde a arte pode ser mais que contemplada: pode ser sentida como guia, como força que abre caminhos.
“Oyá quer dançar e abrir seus caminhos”, afirma. E talvez também queira nos lembrar de algo que esquecemos: o tempo também pode ser som.
Sobre a artista
Lírio Valente é artista visual, performer e pesquisadora. Sua obra transita entre o corpo, o rito e a imagem como linguagem sensível. Suas criações investigam a ancestralidade, a escuta e as potências invisíveis que permeiam o cotidiano. Com uma poética profunda e intuitiva, Lírio não representa — ela evoca. Suas imagens não buscam ser explicadas, mas sentidas. Em Oyá, essa vocação se expande: não se trata apenas de arte, mas de presença.
Belo trabalho e poética.